sexta-feira, 24 de abril de 2009

Cleptomaníaco

De vez em quando, ou quase sempre, roubo umas coisas que vejo paradas por aí. São coisas, muitas vezes, esquecidas pelos outros, com pouca valia, um ceitil para a sociedade atual. Comecei esse vício, que, na minha opinião, não é um defeito, alguns anos atrás. Já me repreenderam por ter tentado furtar um quadro do Cavalcanti, o sino da igreja matriz de Ouro Preto, as estátuas dos profetas do Aleijadinho, o pirulito da praça sete, até o lago artificial do Congresso. Sinceramente, eu achei um absurdo me recriminarem, mas, por outro lado, não posso privar um povo de ver as belezas do nosso país. Então resolvi diminuir nos furtos, ou melhor, na ação e empreitada. Uma chave daqui, uma caneta acolá, um batom outrossim. Confesso que sou um exímio mandrião e tudo que desejo, quando os olhos vibram e se entumecem famintos e cobiçosos por algo, consigo ter em minhas mãos, lépidas e leves. Tenho uma coleção exorbitante de bugigangas preciosas. As pessoas, ao me visitarem, se assustam com o amontoado de cousas lá em casa, muitos me acham um belchior. Sempre afirmo que sim, que trabalho com isso, mas não vendo nada a ninguém. Continuei minha furtiva saga. Logrando êxito, sempre! Guarda-chuvas, mochilas, escova de dente, chaveiro, espelhinho, xampu, etcetera etc.

Perguntam-me por quê faço isso. Ora, é o desejo irrefreável de posse. Algo d'alma. Um prurido de ser proprietário. Uma fome kigaliana de querer tudo. Aspiração de dono do mundo. É, em suma, um preenchimento humano incomparável. Vocês podem imaginar qualquer coisa, ela estará lá em casa, nos meus domínios. Minha última atuação foi em Londres. Em terras inglesas consegui o anel da rainha, num descuido dela e da guarda-inerte-real. O anel se encontra na redoma de vidro na cabeceira da minha cama, junto com meu Coubert e Munch. Fiquei feliz e em regozijo por um bom tempo, pois tinha tudo, ou quase. No momento em que parecia perder o interesse de apossar das cousas, lembrando o velho adágio: "O princípio do fracasso é quando começamos a acostumar com o sucesso", eis que surge, novamente, irreprimível, o anseio, o desejo de obter algo.

Começando do começo, tautologicamente falando, estava, eu, flanando pelas ruas da cidade, sem preocupação, ouvindo um jazz, eis que me aparece o inesperado, o inenarrável, o divino, o único objeto que não possuia, ainda. ELA! Estava estática, tomando uma cerveja, parecia esperar alguém, cabelos escuros como a noite, olhos de Afrodite, penetrantes, e um sorriso como pérolas, lindo colar. Aquilo foi arrebatador. ELA é. Minha boca salivou, minhas mãos suaram, meu corpo tremeu. Rapidamente fui ao seu encontro. Como imaginei, ELA foi simpaticíssima. Conversamos horas demoras. Cada palavra era um arpejo, uma nota, sonata de Bach. Não me gabando, mas consegui com minha sagaz léria, o abençoado beijo. Que beijo! Minha boca derretia na dELA. Caí de amores, não consegui resisti. Passamos uma rápida noite juntos. Estava tudo perfeito. O céu era o colo dELA. Esqueci todas as minhas posses, perdi-me, alucinei-me. Achei que nunca fosse acabar aquele dia e não queria. Porém... ELA teve que descansar em seu palácio. Fui embora cabisbaixo, mas ainda tinha o gosto dELA nos meus lábios e o perfume aromatizando todo o ar. O dia perfeito!

Cogitei ligar novamente só para ouvir seu canto. Contive-me. Liguei no outro dia. No entanto, friamente ELA me atendeu. Não rendeu assunto. Inventou infinitas desculpas descabidas. Não podia nada. Desdenhou-me. Segurei o pranto no cílios e traguei a dor secamente. Nunca mais liguei de novo, por ora. Voltei ao meu labor. Furtei ainda mais, demasiadamente, freneticamente. Fiz-me feliz de novo, só um pouco. Roubei tudo, de todos. Mas minha maior surpresa foi que, eu, pensando em roubar o coração dELA, ELA que roubou o meu.


(VFM)

Obs: Isto é uma obra de ficção.

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