sexta-feira, 13 de março de 2015

NAS GARRAFAS NÃO CABEM


Nas garrafas não cabem
Cartas pequenas
Ou grutas de socorro.
Nas garrafas não cabem
Doses de preguiça
Ou náuseas de chegada.
Nas garrafas não cabem
Manhãs marítimas frias
Ou enjoar de sonhos salgados.
Nas garrafas não cabem
Bandeiras, fogos, apitos,
Ou mulher bonita, instantes.
Nas garrafas não cabem
Mil faces, vidas, diamantes,
Ou luxo de sombras, ressacas.
Nas garrafas não cabem
Sobreviventes de espumas
Ou alguns olhos oxidados.
Nas garrafas não cabem
Marinheiros com pau duro
Ou gritos de várias estátuas.
Nas garrafas não cabem
Espelhos fingidos e endiabrados
Ou saudades reencontradas.
Nas garrafas não cabem
Esperança, olhar antigo, múltiplo,
Ou salvação na prancha do drama.
Nas garrafas não cabem
A vida, talvez, boa, espaçosa,
Ou o naufrágio breve.
Nas garrafas não cabem
Passarinhos oferecendo cantos,
Ou gaiolas de água-viva.
Nas garrafas não cabem
A mulher que espera a volta
Ou conjuga as lágrimas.
Nas garrafas não cabem
O permanente, os gestos, o run,
Ou o mistério da melancolia.
Nas garrafas não cabem
A trama da alga na aurora,
Ou a fala amorosa da lua.
Nas garrafas não cabem
O peixe louco e muito calado
Ou a vida longe de mim.
Nas garrafas não cabem
Poesia, problemas, paisagens
Ou carícias em ondas.
Nas garrafas não cabem
Vitórias e louros e fracassos
Ou mais fracassos e ascos.
Nas garrafas não cabem
Fantasias e algumas violências
Ou carinhos minúsculos.
Nas garrafas não cabem
O esplêndido ser e a confiança
Ou o exterior das mentiras.
Nas garrafas não cabem
A boca que destrói os minutos
Ou a gravidade de dois seios.
Nas garrafas não cabem
o Instinto, o impudor, os dedos,
Ou o abraço abandonado.
Nas garrafas não cabem
A alegria mordida na onda
Ou a triste estória arenosa.
Nas garrafas não cabem
A morte silenciosa e faminta
Ou a vida, o cônjuge pacato.
Nas garrafas não cabem
O cheiro da pátria na carne
Ou as distâncias dos trópicos.
Nas garrafas não cabem
A música dentro da face de pedra
Ou o silêncio incendiado.
Nas garrafas não cabem
O hálito, a mãe, as espadas
Ou a loucura a loucura do mar.
Nas garrafas não cabem
Ó meu amor, os livros, os mitos
Ou a reconciliação com Deus.
Nas garrafas não cabem
Os precipícios da memória
Ou a transfiguração dos coqueiros.
Nas garrafas não cabem
As oferendas ao bolso abstrato
Ou o dinheiro demente.
Nas garrafas não cabem
Nosso íntimo, o sorriso que alimenta
Ou a decisão da resposta.
Nas garrafas não cabem
O banzo moroso da vida breve
Ou o perdão martirizado.
Nas garrafas não cabem
O sal, o profundo sal em mim,
Ou o doce fruto da eternidade.
Nas garrafas não cabem
Tantas palavras assim, iguais,
Ou, talvez, o mijo, o mijo.
Nas garrafas não cabem
A epopeia de Noé, bicho louco,
Ou arcar com as consequências.
Nas garrafas não cabem
O anzol perfumado da língua
Ou a mentira, mentira, mentira.
Nas garrafas não cabem
A verdade supersticiosa caberá?
Ou a guerra, os membros, a dor.
Nas garrafas não cabem
O último pedido, a refeição,
Ou a guilhotina dos desejos.
Nas garrafas não cabem
Os espasmos da alma ou te ver
Ou o punhal que me acaricia.
Nas garrafas não cabem
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo
Ou nada do que falei e penso.
Nas garrafas não cabem
A livre tolice e a equilibrada filosofia
Ou o coração partido e democrata.
Nas garrafas não cabem
A flor diurna do teu nome
Ou a hipocrisia de não dizê-lo.
Nas garrafas não cabem
O que escrevi na carta descascada
Ou no lápis que nunca tive.
Nas garrafas não cabem
A sede de amar mais uma vez
Ou a fome doente do antigo amor.
Nas garrafas não cabem
A bicicleta do novo alfabeto
Ou a paralisia das cidades.
Nas garrafas não cabem
Minha máquina de sexo de enxofre
Ou o polvo que me masturba.
Nas garrafas não cabem
A paisagem das podres laranjas
Ou o sol dentro dos cocos.
Nas garrafas não cabem
O violão, teu corpo de cítara,
Ou a corda arrebentada da lua.
Nas garrafas não cabem
O calor que nunca acaba
Ou este mês pesado em meu colo.
Nas garrafas não cabem
Meus pensamentos sem saída
Ou a entrada de um labirinto.
Nas garrafas não cabem
O passado o presente o futuro
Ou o relógio ancorado no pulso.
Nas garrafas não cabem
As barbatanas do tempo afora,
Ou o atum que fede meu sono.
Nas garrafas não cabem
Aquele anel que roubei do mundo
Ou a ilusão do teu marulho.
Nas garrafas não cabem
A luz estanque do velho poente
Ou o desembarcar dos teus beijos.
Nas garrafas não cabem
A saudade, a plácida saudade,
Ou toda a saudade existente.
Nas garrafas não cabem
O que me devora por dentro
Ou a amarga beleza viva.
Nas garrafas não cabem
A política de não querermos mais
Ou o voto de castidade.
Nas garrafas não cabem
Os amigos límpidos e noturnos,
Ou a família cor de pérola.
Nas garrafas não cabem
A arte, a porrada, o desconhecido,
Ou o sangue seco do verão.
Nas garrafas não cabem
Crianças suicidas de imaginação
Ou velhos temas azulejados.
Nas garrafas não cabem
As tangentes, a química entre nós,
Os mapas esotéricos.
Nas garrafas não cabem
A paixão carnívora dos cegos
Ou as vísceras da aceitação.
Nas garrafas não cabem
A rolha para vedar nossos lábios
Ou o vinho canto dos milagres.
Nas garrafas não cabem
O branco fio de cabelo crescente
Ou o que reside entre as conchas.
Nas garrafas não cabem
A orla que respira em vaivém,
Ou o prometido exílio dos ébrios.
Nas garrafas não cabem
As casas desabitadas do conhecimento,
Ou os troféus empoeirados.
Nas garrafas não cabem
Talheres para as viagens do poema.
Nas garrafas não cabem
Os quadris sem fôlego, selváticos,
Ou a queimadura entre as coxas.
Nas garrafas não cabem
O sêmen, remoinhos de estrelas,
Ou a porra toda que vivo.
Nas garrafas não cabem
O meu grito por ti, comerciante,
Ou o gengibre boca a boca.
Nas garrafas não cabem
O vazio vítreo, o vácuo que criamos,
Ou a plástica da própria garrafa.
Nas garrafas não cabem
O meu desespero em que tudo boia,
Ou o que eu procuro e não existe.
Nas garrafas não cabem
O homem, o você, o eu, a humanidade,
Ou o que o delírio multiplica.
(VFM)

Nenhum comentário:

Postar um comentário