sexta-feira, 20 de novembro de 2015

QUARTEIRÃO


Ela resolveu dar uma volta no quarteirão para desanuviar saudades e pisar poças. Não chovia, mas algo nela pingava: talvez um olhar de muxoxo, uma lágrima sem sombrinha, talvez um poema envergonhado, ou alguma inspiração infantil. O caminho não era longo, mas florido de ocasiões. Ela queria pensar e examinar aquela angústia que devorava seu ar mouco. Entre meio-dia e três da tarde ela se demorou, acho. Confesso que não tinha relógio e deduzia pelo tempo das borboletas no ar. Ela parou para ver a lagoa e os reflexos estridentes dos pássaros, que mergulhavam na água. Eu a vi comendo um pensamento secreto na promoção do refresco das árvores. Eu vigiava de longe toda aquela volta com meu olhar anímico e frouxo, possivelmente melado de encantamento.
Ela resolveu dar a volta no quarteirão desde que chegou alguma lembrança no retrato guardado na gaveta; possível também quando o vento abanou as rosas de plástico no jarro da mesa. Ela disse aérea e reticente: "vou dar uma volta no quarteirão". Todos que estavam presentes e pareciam estar esquecidos no velho sofá acompanharam somente a dobradiça relinchando, a voz que pousava já fraca no etéreo e o vestido azul pungente e ridículo, que sumiu inocente. O cachorro a seguiu até a escada feita com seus seis arquivos de passos; o gato permaneceu voltado para o norte, distante do sol e das risadas dos outros meninos. A igreja em frente martelava algum martírio ou salvação com a mão de Deus naquela hora de despedida.
Ela ia em passo de balé, verdadeira e calada na sua existência poética. A sua juventude rebelada se perdia no rosto lívido da vizinhança e no barulho provocativo dos bares. O que tanto lhe afligia o riso? Que indomesticável entardecer se abatia nos teus cabelos? Nesses meus pensamentos difíceis eu a perdi. Corri por todos os lados, perguntando a todo comércio, e nada dela. Sofri de cansaço e de desafinada dor. A sua ausência ainda me cabe relembrar. Eu creio que a amava, acho que por causa do meu jeito piedoso de querer achar sempre um final feliz pra tudo.
Resolvi voltar depois de muito molhar as roseiras com minhas inquietações. Quem sabe ela já tivesse regressado? Caminhei conjugando o tempo e escandindo o número das casas. Quando cheguei ao ponto de partida ela não tinha voltado e a casa não estava mais lá. O que restava era um anúncio de uma famigerada construtora. Estranhei o privilégio de envelhecer.

Ela ainda é moradora das minhas distrações e vive a dar voltas no meu quarteirão. E eu e ela estamos no caminho certo.
(VFM)

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