sexta-feira, 10 de março de 2017

DESCOBERTA


Não acreditava nesses antigos provérbios, os quais vaticinavam que ouvir sabiá é dar fruto para nosso coração incerto. Nessas de esfregar os olhos para moer os sonhos empedrados, percebi que um certo perfume ainda pendurado no bigode mudava a paisagem. Não tinha sido o excesso de álcool despejado em palavra seca, muito menos os cigarros cintilando em noite escura, mas algo mais cantado pela história, com certa vergonha entre livros. Poderia diagnosticar como um delírio, que a noite de ontem insistia em se negar passar e reafirmar que durante um tempo, ou muito tempo, podemos ser felizes?! Estou certo que o medo nos toca diante dessa incerteza e dessa gota de possibilidade. Parei para pensar sobre o fato e pude reconhecer os ardis daquela bela sombra que me amparou nos braços e soube cobrar em doces tributos as exigências do encanto.
Foi simples para o tempo, mas desesperadamente único para mim. A cidade em que vivo me deu o itinerário certo para arruinar meus receios e ocultar minha impassibilidade. Pude visitar menos aborrecido, de carona com uma nuvem mensageira, os segredos que ela, sim, ela, habitada de sentimentos e intenções escusas, transeunte da vontade, medindo cada caminho, cada metro quadrado, cada corpo, com primor de um laço, os seus olhos de bússola.
O encontro foi por acaso. Uma trombada ao virar a esquina, uma pergunta de que horas são, um com licença no supermercado, um empresta o isqueiro no bar do bairro. Daí não escondemos conversa e fomos empurrando o tédio para os ratos insones. O dia foi se encurtando e a noite perdeu sua quietude, nomeando nossos desejos em terremotos. A audácia prazenteira me tomou conta e matamos, boca a boca, os ecos do abismo. Hoje, após sua saída abrupta - atraso ao trabalho -, sem me deixar promessas, me atentei que ela, depois de tentar em vão ressuscitar outros tempos, somente ela, me encheu a boca de mantimentos, misturando querosene em meu sangue, essas coisas de batizar o coração. Ela, invisível ao partir, visível ao que ficou, esqueceu sobre a cama, estendido no lençol amarfanhado, o amor.

(VFM)

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